Ermínia Maricato
A evolução dos indicadores sociais, que acompanham o processo de urbanização no Brasil, apresenta um quadro contraditório. Desde os anos 40 podemos festejar a queda ininterrupta da mortalidade infantil (de 149 mortes para cada mil nascidos vivos em 1940 para 34,6 em 1999), o aumento, também ininterrupto da expectativa de vida (de 42,7 anos em 1940 para 68,4 em 1999) e a queda do número de filhos por mulher em idade fértil (4,4 filhos em 1940 para 2,2 em 2000). O nível de escolaridade, como todos sabemos, também evolui positivamente ao longo do período. Esses dados, fornecidos pelo IBGE, propiciam uma leitura bastante positiva da evolução da sociedade brasileira no século passado. Tanto o aumento da expectativa de vida quanto a diminuição da mortalidade infantil, bem como a diminuição da taxa de natalidade, constituem variações significativas e, sem dúvida, benéficas no que diz respeito à qualidade de vida.
O processo de urbanização/industrialização se consolida e se aprofunda a partir de 1930, quando os interesses urbanos industriais conquistam a hegemonia na orientação da política econômica sem, entretanto, romper com relações arcaicas de mando baseado na propriedade fundiária. É importante destacar essa característica do processo social brasileiro: industrialização sem reforma agrária, diferentemente do que ocorrera na Europa e nos Estados Unidos. Nestes, a industrialização foi acompanhada de rupturas na antiga ordem social. Entre nós, predominou um certo arranjo, uma acomodação por cima como ocorrera em outros momentos importantes na história do país: independência (1822), Constituição de 1824, Lei de Terras de 1850, "libertação" dos escravos em 1988, República 1889, característica para a qual chamam a atenção diversos estudiosos como Francisco de Oliveira, Alfredo Bosi, José de Souza Martins, Roberto Schwarz, entre muitos outros.
Entre 1940 e 1980 o Brasil cresceu, economicamente, a taxas muito altas (crescimento do PIB equivalente a 7% ao ano) e, embora a riqueza gerada por esse crescimento tenha sido muito mal distribuída, ainda assim proporcionou melhora de vida a grande parte da população, além de resultar em uma respeitável base produtiva.
Nesse período, as grandes metrópoles, especialmente São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, eram vistas como a alternativa de melhora das péssimas condições da vida rural. Um gigantesco movimento migratório foi o principal responsável por ampliar a população urbana em 125 milhões de pessoas em apenas 60 anos. Em 1940, cerca de 18,8% da população brasileira era urbana. Em 2000 essa proporção é de 82%, aproximadamente, o que permite classificar o Brasil com um dos países mais urbanizados do planeta sendo que perto de 30% dessa população vive em apenas 9 metrópoles.
Apesar da sua característica de concentração das riquezas, o processo de industrialização/urbanização foi determinante para a melhora dos indicadores sociais mencionados acima devido à expansão da rede de água tratada, ampliação do uso de antibióticos, aumento da escolaridade materna, aumento do atendimento à gestante, maior acesso à informação, expansão do emprego industrial e acesso, mesmo que restrito, aos direitos sociais no trabalho urbano (dentre outras causas).
Brasil, país urbanizado. Urbanizado, de fato?
Se observarmos os indicadores urbanísticos nesse mesmo período, entretanto, veremos que o ovo da serpente estava sendo gerido. O otimismo que pode emergir dos dados não tem como se sustentar quando observamos que a evolução do uso e da ocupação do solo assume uma forma discriminatória (segregação da pobreza e cidadania restrita a alguns), e ambientalmente predatória. A questão fundiária, cujo enfrentamento foi adiado sine die, no campo, ressurge sob novo formato no universo urbano.
Em 1940 as cidades pareciam ser a promessa da superação do Brasil arcaico rumo à modernização e emancipação política e econômica. A qualidade de vida em São Paulo, por exemplo, foi observada por vários visitantes, dentre os quais o antropólogo Claude Lévi Strauss em seu livro Saudades de São Paulo. O Eldorado era mais do que uma promessa para aqueles que vinham em busca de uma vida melhor. Era realidade, como bem reflete Valter Rogério em seu filme Marvada Carne. A vida na periferia urbana dos anos 60 ou 70 não era tão boa quanto na cidade oficial mas era possível reunir os amigos e vizinhos para um churrasco e uma cerveja (na vida da roça a carne era um alimento raro). As casas, produto do esforço autônomo dos moradores e de seus amigos nos fins de semana, nos loteamentos ilegais da periferia, embora apresentando deficiências eram honestas e dignas. Melhoravam com os pequenos investimentos provenientes das férias e do 13o. salário, ao longo de muitos anos.O desenrolar dos acontecimentos se encarregou de contrariar a utopia da emancipação social e da modernização para todos. No final do século a imagem das grandes cidades está marcada por favelas, poluição do ar e das águas, enchentes, desmoronamentos, crianças abandonadas, violência, epidemias.
A pobreza urbana é maior do que a média da pobreza brasileira e está concentrada nas Regiões Metropolitanas. Dos pobres brasileiros, 33% estão nas "ricas" metrópoles do sudeste. Concentram-se também nas regiões metropolitanas 80% da população moradora das favelas, conforme estudos de Suzana Pasternak. Em 9 metrópoles brasileiras moram cerca de 55 milhões de pessoas. É mais do que a população de vários países latino-americanos ou europeus, juntos. O Rio de Janeiro tem população equivalente a um Chile e São Paulo tem população superior a um Chile e meio. No entanto, o país não tem política institucional para as regiões metropolitanas, como se os índices de violência, poluição e miséria que elas apresentam pudessem ser resolvidos com políticas compensatórias pontuais. A ausência de políticas para as metrópoles é uma ofensa à inteligência brasileira. Se os municípios que as compõem se entenderem para compatibilizar as iniciativas relativas à coleta e destino do lixo urbano e da macro drenagem, por exemplo, melhor para todos, senão, azar.
Aproximadamente 50% da população das metrópoles de Rio de Janeiro e São Paulo mora nas favelas ou nos loteamentos ilegais da periferia. Mas os problemas urbanos estão longe de se restringir às áreas metropolitanas. O censo do IBGE de 1991 verificou uma tendência confirmada em 2000, de que as cidades médias (entre 100.000 e 500.000 habitantes) crescem a taxas mais altas do que as regiões metropolitanas (4,8% contra 1,3%). Os problemas das metrópoles começam a surgir nas cidades de porte médio que ainda apresentam melhor qualidade de vida: Florianópolis, Aracajú, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, dentre tantas outras. Favelas, crianças abandonadas, moradores de rua, congestionamentos de veículos, mortes no trânsito, poluição da água e, em especial a chamada violência urbana são alguns dos indicadores que constituem amostra da tendência que é geral.
Há um desaceleramento no crescimento das metrópoles mas ele se verifica especialmente no município central. Há casos, como o Rio de Janeiro, onde o município central chegou a perder população nos últimos anos. Mas essa não é a realidade dos municípios periféricos das regiões metropolitanas. As periferias crescem mais do que os núcleos e em algumas metrópoles esse crescimento é explosivo como acontece em Belém (157,9%), Curitiba (28,2%), Belo Horizonte (20,9%) , Salvador (18, 1%) e São Paulo (16,3%), de acordo com pesquisa do IPEA para o período 1991/1996. Ou seja, as tendências futuras não são alvissareiras.
O crescimento urbano resultante desse intenso crescimento demográfico se fez, em grande parte, fora da lei (sem levar em conta a legislação urbanística de uso e ocupação do solo e código de obras), sem financiamento público (ou ignorado pelas políticas públicas) e sem recursos técnicos (conhecimento técnico de engenharia e arquitetura). Sem alternativas, a população se instalou como pôde, com seus parcos recursos e conhecimento.
Um problema que ninguém quer conhecer e enfrentar: o da moradia social
A busca de dados fidedignos sobre as condições de moradia e a situação fundiária de nossas cidades é frustrante pela falta de rigor nos levantamentos. O desconhecimento nacional sobre esse universo é gerado, em parte, pela confusão que cerca as titularidades de terras e seus limites. Essa confusão abrange tanto os cartórios de registro de imóveis como os cadastros imobiliários urbanos. O levantamento dos brasileiros que moram em favelas é bastante sub dimensionado pelo IBGE, como não poderia deixar de ser.
Diversos levantamentos (teses acadêmicas, prefeituras, e IBGE) mostram que: 33% da população de Salvador mora em áreas invadidas. 34% em Fortaleza, 40% em Recife, mais de 50% em Maceió, e mais de 20% em Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. A decantada Curitiba exibe um crescimento fantástico de áreas invadidas formando um cerco completo em torno do município central.
O gigantesco crescimento de invasões de terra, em anos recentes, se dá devido à falta de alternativas habitacionais, seja por parte do mercado privado (que não chega a atender 30% da população do país segundo dados da Cibrasec!) seja devido ao diminuto alcance das políticas públicas. Sem subsídios, não há como incorporar a maior parte da população ao mercado, muito menos quando ele continua privilegiando os ganhos especulativos. Bancários, professores secundários, policiais, enfermeiros, todo um contingente de trabalhadores regularmente empregados são excluídos do mercado o que não dizer dos informais, que são em número crescente.
A auto-construção de casas em loteamentos ilegais ou terras ocupadas irregularmente, prática vista com bons olhos por alguns que enfatizavam a capacidade e a solidariedade presente nas iniciativas populares de construção da cidade conduziu, ao final de muitos anos, a um grande desastre. Algumas das maiores aglomerações do mundo, como é o caso de Rio de Janeiro e São Paulo tem regiões inteiras construídas a partir dos esforços fragmentados e espontâneos de um sem número de agentes isolados. O resultado é caótico, como se pode constatar na zona oeste do município do Rio de Janeiro: terras sem lei, seja para a ocupação urbana seja para a resolução de conflitos entre os moradores. Mas a irregularidade urbanística não pode ser atribuída apenas à população sem alternativas.
Na malha urbana do Capão Redondo, distrito de São Paulo onde habitam aproximadamente 800.000 pessoas percebe-se a falta de coordenação entre os agentes que participaram de sua construção, incluindo o Estado com a promoção de conjuntos habitacionais. Loteamentos ilegais, conjuntos habitacionais de promoção pública, "condomínios fechados" de promoção privada e favelas (que ocupam as franjas sobrantes dessas iniciativas) formam uma colcha de retalhos sem qualquer unidade ou articulação. A ausência de qualquer racionalidade na circulação viária, interrompida a cada 500 metros, revela que se trata de um depósito de pessoas. A ausência da gestão pública, a inexistência de qualquer contrato social remete o lugar para a "terra de ninguém" onde "a lei é do mais forte". É compreensível que o distrito apresente alguns dos maiores índices de violência de São Paulo.
Em Goiânia, Brasília e Maceió, a ilegalidade na ocupação do solo, com a promoção de imensos loteamentos populares foi iniciativa única e exclusiva do Estado. Isolados da "cidade oficial" ou da "cidade legal", esses depósitos de pessoas marcados pelo abandono, são produto de iniciativas populistas, bem sucedidas do ponto de vista eleitoral, mas que resultam numa tragédia em termos sociais, urbanos e ambientais.
Como esse crescimento urbano conduz ao desastre ambiental
Dentre as principais conseqüências da falta de alternativas de moradias legais (ou seja, reguladas pela legislação urbanística e inseridas na cidade oficial) está a agressão ambiental. A ocupação de áreas ambientalmente frágeis - beira dos córregos, encostas deslizantes, várzeas inundáveis, áreas de proteção dos mananciais - é a alternativa que sobra para os excluídos do mercado e dos insignificantes programas públicos. Em algumas cidades, como em São Paulo e Curitiba, as regiões onde a ocupação mais cresce são as Áreas de Proteção dos Mananciais, ou seja, áreas produtoras de água potável onde a ocupação é proibida na lei mas não o é na prática da ocupação do território.
Nas grandes e médias cidades os rios, riachos, lagos, mangues e praias tornaram-se canais ou destino dos esgotos domésticos. O esgotamento sanitário atinge 54% dos domicílios em todo o Brasil mas apenas 10% do esgoto coletado é tratado. O restante permanece na rede hídrica. Quanto ao lixo, 29% do montante coletado é tratado. Isso fica evidente na paisagem de qualquer estrada que deixa as metrópoles ou grandes cidades, as quais são acompanhadas durante quilômetros pelo lixo não recolhido.
Para finalizar
A reversão desse quadro exige, antes de mais nada, um conhecimento mais rigoroso sobre ele. O primeiro passo para começar a mudar esse rumo é tirar as instituições e a sociedade do "analfabetismo urbanístico" e criar a consciência da dimensão dos problemas que estão sendo produzidos por esse crescimento urbano sem regulação pública e socialmente desigual. O conhecimento sobre as cidades no Brasil e sobre a cidade em que cada um vive poderia começar na rede escolar.
Instrumentos legais e planos urbanísticos que orientem as cidades em direção ao "crescimento harmônico e equilibrado" (palavras frequentes nas introduções dos Planos Diretores) não faltam. Temos inclusive motivos de otimismo já que em julho de 2001, após 12 anos de promulgada a Constituição Federal de 1988, o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Cidade: um inédito conjunto de medidas que visam a implementação da função social da propriedade. Entretanto, a história do urbanismo brasileiro mostra que, com a ausência dos olhos da sociedade, não há como impulsionar a aplicação de planos e leis que poderiam definir uma nova era do desenvolvimento urbano no Brasil.
Sem querer abusar do trocadilho trata-se de ocupar a lacuna e criar a consciência com ciência, com conhecimento.
Ermínia Maricato é professora-titular, coordenadora do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. É autora do livro Brasil cidades: alternativas para a crise urbana (Vozes, 2001).
http://www.comciencia.br/comciencia/
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