sexta-feira, maio 05, 2006

O país distorcido

Tensão entre o universal e o internacional se encontra na raiz de nossa necessidade em legitimar a cultura brasileira

(2/5/1999)



MILTON SANTOS

Há, em toda parte, no país, um certo alvoroço, para festejar os chamados 500 anos de Brasil. Esse é um grande pano de fundo.

Como nele enquadrar manifestações, como, por exemplo, esse questionário distribuído pelo Mais! de 11 de abril a dez dos mais importantes intelectuais nacionais para que, indicando 30 títulos, opinassem sobre as cem melhores obras mundiais de não-ficção neste século e as 30 melhores obras brasileiras de não-ficção em todos os tempos, isto é, 500 anos?

Entre os escolhidos cem melhores livros de não-ficção do século 20, há apenas um de autor brasileiro, Euclides da Cunha. E a lista contempla outro latino-americano: Jorge Luis Borges.

Cabe, desse modo, admitir nossa inapetência ou incapacidade de ser intelectualmente universais ou, mesmo, internacionais? Que país é esse, o Brasil, nos seus 500 anos? Podemos, a partir desses fatos, indagar-nos sobre esses 500 anos de formação de uma idéia de Brasil? Ou seria melhor debruçar-nos sobre a interpretação, a partir do fato nacional, de expressões como internacional, global, universal, noções que se prestam a confusão?

O chamado internacional seria modelado pela economia e pela política, criando relações que acabam por supor pontos de vista seletivos e por impor idéias e ações que, na origem ou nos desdobramentos, são marcadas por pragmatismo. Pensou-se que o global seria abarcativo, democratizante.

Mas na prática atual, ao contrário do que se podia sonhar, reduz ainda mais o escopo das trocas, abastarda as comparações e aprofunda a visão pragmática, na medida em que convoca todas as forças a buscar um único caminho.

Já o universal, que é independente de realizações práticas imediatas, é encontrado na busca de uma generalidade significativa e representa não apenas as quantidades do mundo, mas as qualidades e valores. Por isso é abrangente de tudo e de todos, a despeito de hierarquias.

Quando o parâmetro é a universalidade, o pensamento começa e termina com o pensamento filosófico; quando, porém, trata-se de internacionalidade, internacionalismo ou globalismo, a centralidade vai à economia. O internacional e a modernidade sempre estiveram na raiz da nossa busca intelectual, ambos significando a Europa e, mais recentemente, também os Estados Unidos.

Mas, era um internacional que se queria mundo e, pela força da economia, da política e das armas, oferecia-se equivocadamente como mundo, no processo de pensar o planeta, o continente e o país.

O próprio ensino da filosofia, além de um passeio superficial sobre diversos continentes, apenas se aprofundava nos pensadores e nas idéias oriundas daquelas áreas geográficas constitutivas do que admitíamos como internacional, deixando para trás tudo o mais, considerado como irrelevante. Esse caminhar acarretou pelo menos dois problemas.

O primeiro, a partir da nossa construção via colonização, levava a limitar o pensamento na órbita de uma história que já havia sido feita por outros, como se a história nova fosse mera repetição ou herança obrigatória do passado alheio.

O segundo problema vem de fato da mesma colonização, atribuindo ao ensino das idéias um certo caráter instrumental, na medida em que outras formas de pensar eram excluídas. No fundo, essa atitude acaba por produzir, perto ou longe, direta ou indiretamente, uma certa legitimação à instrumentalidade da economia na produção do pensamento social.

As consequências dessa visão distorcida do mundo são, na realidade, devastadoras para as ciências humanas, na medida em que adotem pontos de partida redutores e, neutralizando o ímpeto da crítica e aceitando raciocínios estabelecidos em função de outras realidades, conduzam a fornecer exegeses e exemplos resignados.

Quando o parâmetro é a universalidade, as idéias começam e terminam com um pensamento filosófico, que pode ser procurado e encontrado, não importa onde estejamos. Tal atitude tem reflexos sobre a conformação do gosto e das escolhas, conduzindo, de forma talvez imperceptível, a reproduzir, com exemplos novos, formulações alheias, aceitas como se fossem universais.

Os mencionados desvios são limitadores na elaboração dos pensamentos brasileiro e latino-americano e em nossa própria visão de nós mesmos e do continente. É como se todos quiséssemos ser europeus e agora um pouco mais, porque também queremos ser norte-americanos. Até mesmo a elegância no dizer é copiada.

Quem é levado a uma atividade intelectual verdadeiramente transnacional (não nos referimos à rotina de congressos pré-concluídos nem às coletâneas de textos encomendados sob medida) descobre, de modo esporádico ou sistêmico, que um grande número de formulações genuínas, provindas de uma interpretação universal de situações específicas -continentais, nacionais, locais-, acaba por ser avaliada em função de outras formulações, igualmente emanadas de situações específicas, ditas internacionais e tornadas cânones pelo simples efeito de autoridade.

É como se o trabalho acadêmico devesse constituir uma permanente adjetivação, geralmente diminutiva ou depreciativa, do que na realidade é substantivo. Isso, aliás, é válido para todo tipo de trabalho intelectual, não apenas o acadêmico. A questão central que nos ocorre, sobre a nossa interpretação de nós próprios, nesses chamados 500 anos de Brasil, é a seguinte: é possível opor uma história do Brasil a uma história européia do Brasil, um pensamento brasileiro em lugar de um pensamento europeu ou norte-americano do Brasil, ainda que conduzido aqui pelos bravos "brazilianists" brasileiros?

Não se trata de inventar de novo a roda, mas de dizer como a fazemos funcionar em nosso canto do mundo; reconhecê-lo será um enriquecimento para o mundo da roda e um passo a mais no conhecimento de nós mesmos. Ser internacional não é ser universal e para ser universal não é necessário situar-se nos centros do mundo. Inclusive pode-se ser universal ficando confinado à sua própria língua, isto é, sem ser traduzido.

Não se trata de dar as costas à realidade do mundo, mas de pensá-la a partir do que somos, enriquecendo-a universalmente com as nossas idéias; e aceitando ser, desse modo, submetidos a uma crítica universalista e não propriamente européia ou norte-americana.

Leia mais: O chão contra o cifrão

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