Por Chris Bueno
Lixo e energia podem ter mais em comum do que se imagina. Além de serem dois dos maiores problemas atuais – o crescimento da atividade industrial e do consumo gera, por um lado, aumento na produção de lixo, e por outro, o risco de falta de energia para atender a crescente demanda –, algumas das fontes de energia usadas atualmente são grandes produtoras de lixo, gerando resíduos, na maioria das vezes, prejudiciais à saúde. No entanto, o que é um grande problema pode ser, ao mesmo tempo, uma solução: o lixo pode se tornar ele mesmo uma fonte de energia.
A energia produzida no Brasil é majoritariamente limpa, pois é centrada nas hidrelétricas, que são responsáveis por 70,77% da matriz energética do país, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). No entanto, quando o nível dos reservatórios fica baixo, como na longa estiagem que houve em 2007, as termoelétricas movidas a gás ou a óleo são acionadas e elas produzem resíduos no processo de geração de energia. Na queima desses combustíveis, há emissão de gases poluentes, como o óxido nítrico (NO2) e o gás sulfuroso (SO2), que podem não apenas causar riscos à saúde, como problemas respiratórios, mas também contribuir para o aumento do efeito estufa. Também pode ocorrer contaminação de rios, lagos e mananciais, com o descarte incorreto dos resíduos gerados pelas termoelétricas.
Um caso que está criando polêmica atualmente é o da cana-de-açúcar utilizada para gerar biocombustível. O que em teoria deveria ser uma energia limpa está sendo colocado em xeque por vários pesquisadores, que apontam os problemas que a queima da palha da cana-de-açúcar, realizada durante a colheita, traz para o meio ambiente e para a saúde humana. Duas pesquisas feitas recentemente no Instituto de Química da Unesp relacionaram essa queima a problemas respiratórios e quantificaram as emissões de compostos de nitrogênio na atmosfera. “Este processo acaba interferindo diretamente na saúde da população, pois a combustão da palha da cana-de-açúcar libera poluentes e o principal dano é o prejuízo à qualidade do ar e, conseqüentemente, da saúde, pela excessiva emissão de monóxido de carbono e ozônio, trazendo também danos ao solo, às plantas naturais e cultivadas, à fauna e à população”, escrevem Maria Nazareth Vianna Roseiro, mestre em saúde pública, e Ângela Maria Magosso Takayanagui, professora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública, ambas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP, no artigo “Meio ambiente e poluição atmosférica: o caso da cana-de-açúcar”. Em algumas regiões do estado de São Paulo, a queima da palha durante a colheita chegou a ser proibida em 2006, no período em que a umidade relativa do ar atingiu níveis muito baixos.
O lixo nuclear talvez seja o caso mais emblemático: apesar de ser uma energia limpa, seus resíduos são um dos pontos que mais pesam em relação à rejeição ao seu uso. Esses resíduos são altamente tóxicos, com risco de desenvolvimento de câncer mesmo em pessoas expostas a baixas doses de radiação. São também muito poluentes, podendo contaminar o ar, a água e o solo. Tanto que o Greenpeace lançou em 2005 um relatório de 128 páginas sobre os riscos desse tipo de energia. Embora haja planos para a expansão da energia nuclear no Brasil, ainda não foi decidido qual será a destinação de seus resíduos. Atualmente, os resíduos de baixa e média densidade são depositados em tambores especiais, onde ficam armazenados até perderem sua radioatividade. Já os resíduos de alta densidade são depositados provisoriamente em piscinas de concreto especialmente preparadas, porém ainda não se definiu qual será o destino definitivo para eles. Dar uma destinação segura a esses resíduos diminuiria a rejeição a esse tipo de energia.
O caminho inverso
O lixo nuclear é exemplo de resíduo que também pode ser reaproveitado na própria geração de energia. O rejeito de alta radioatividade, que a indústria chama de subproduto, é formado pelo elemento combustível já irradiado dentro do reator. Normalmente, esse elemento é retirado do reator com apenas 15% da sua capacidade utilizada, podendo, então, ser reutilizado. O que já ocorre hoje em dia, no caso da usina receber elementos combustíveis com algum tipo de problema, é ela recorrer a esses resíduos em combinação com o novo. No entanto, o desenvolvimento de pesquisas pode levar à reutilização de uma maior parte desses resíduos, tornando a energia nuclear menos poluente e mais econômica.
O óleo de cozinha também pode passar de poluente a fonte energética. O resíduo, geralmente despejado em pias, ralos e até vasos sanitários, é um grave problema para rios, lagos e mananciais, pois não se dissolve nem se mistura com a água, formando uma camada densa na superfície, que impede as trocas gasosas e a oxigenação. Porém, se coletado, o óleo e outras gorduras de origem animal ou vegetal utilizado no preparo de alimentos, pode ser transformado em biodiesel – uma energia limpa e barata. A técnica já provou dar certo: uma parceria entre a Unicamp e a prefeitura de Indaiatuba (SP) possibilitou a instalação de uma usina capaz de transformar o óleo de cozinha em biodiesel, que já responde pelo abastecimento de toda a frota do Serviço Autônomo de Água e Esgotos da cidade.
Transformar resíduos em energia não é novidade no mundo desenvolvido. Nos países europeus, nos Estados Unidos e no Japão, essa técnica já está em prática desde os anos 1980. Mas o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil produz cerca de 150 mil toneladas de lixo por dia. A maior parte desses resíduos (aproximadamente 60%) tem seu destino em lixões, aterros sanitários irregulares, leitos de rio ou ainda queima a céu aberto. Os lixões e aterros existentes já estão, em sua maioria, saturados. Apesar disso, quase nada dos resíduos brasileiros é transformado em energia, ao contrário dos países ricos, que processam 130 milhões de toneladas de lixo, gerando energia elétrica e térmica em 650 instalações. Somente a União Européia extrai 8.800 megawatts de 50,2 milhões de toneladas por ano em 301 usinas, segundo dados da última edição da Waste to Energy International Exhibition & Conference from Waste and Biomass (http://www.wte-expo.com/), conferência internacional sobre últimas novidades e tecnologias ligadas à geração de energia a partir do lixo, realizada em maio de 2007 na Alemanha.
“É muito significativa a contribuição que essa nova forma de se gerar energia pode trazer. De fato, cada 200 toneladas por dia da fração orgânica dos resíduos sólidos domiciliares permitem a implantação de uma usina termelétrica com a potência de 3 megawatts, capaz de atender uma população de 30 mil habitantes. Isso quer dizer que, se a fração orgânica (60%) de todo o lixo domiciliar brasileiro fosse utilizada para produzir energia elétrica, poderíamos implantar usinas termelétricas com potência significativa, cujo valor seria apreciável”, escreve o economista Sabetai Calderoni, doutor em ciências pela USP, em seu livro Os bilhões perdidos no lixo. Contudo, o potencial brasileiro para transformar lixo em energia permanece subutilizado, mesmo com o aumento de 5,4% no consumo de energia no país no ano passado, segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). O dado é preocupante para um país que recentemente passou por um racionamento de energia e ainda vive sob o fantasma do apagão.
“A maior parte dos problemas causados pelo lixo pode ser resolvida com sua conversão em energia”, explica Luciano Basto Oliveira, doutor em planejamento energético pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da UFRJ, e assessor da Superintendência de Gás e Biocombustíveis da EPE. “É uma questão tecnológica, com suas repercussões ambientais, sociais e financeiras. Isto já é feito em diversos lugares, sobretudo no hemisfério norte, onde se encontram os países mais ricos. Só no caso do lixo urbano, existem mais de 1.700 usinas de geração elétrica em funcionamento, aplicando cerca de 100 tecnologias”, aponta.
Usar o lixo para gerar energia é uma solução não apenas econômica, mas também social e ambiental. Basta pensar que o destino mais comum do lixo brasileiro, os lixões e aterros, também são um problema para a saúde e para o meio ambiente, pois contaminam o solo com um líquido altamente tóxico, chamado chorume, que polui também as águas de lençóis freáticos, e produzem metano (CH4), um gás ainda mais prejudicial à atmosfera que o próprio dióxido de carbono (CO2), considerado o grande vilão do efeito estufa. Essa situação pode ser revertida com uma ação relativamente simples: o aproveitamento do gás produzido nos depósitos de lixo como fonte de energia.
“ Os processos de geração de energia a partir de lixo sólido são basicamente dois: a fermentação anaeróbica de lixo por microorganismos, com geração de metano como produto metabólico, e a incineração controlada do lixo”, explica José Aurélio Medeiros da Luz, um dos líderes do grupo de pesquisa sobre tratamento de minérios e resíduos da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Segundo o pesquisador, a fermentação – decomposição da matéria orgânica – é geralmente feita em biodigestores, ou em aterros sanitários munidos de sistema de dutos de coleta do biogás, um conjunto de gases gerados por essa decomposição. O biogás possui entre 50% e 70% de metano, que tem poder calorífico, isto é, pode ser queimado para gerar energia. No caso da incineração, a energia é gerada através da queima completa dos resíduos. Esse processo produz monóxido de carbono, que também apresenta poder calorífico. Em ambos os casos, é possível não apenas gerar energia a partir do lixo, mas também utilizar a redução das emissões de gases de efeito estufa para negociar certificados de créditos de carbono com valor no mercado financeiro, de acordo com o Protocolo de Kyoto.
Potencial brasileiro
O Brasil possui grande potencial para gerar energia elétrica a partir de resíduos sólidos e a alternativa poderia aumentar a atual oferta do país em 50 milhões de megawatt-hora por ano, o que representa mais de 15% do total atualmente disponível ou cerca de um quarto do que gera a usina hidrelétrica de Itaipu. “ O caminho é mais curto que parece, pois a comprovação do baixo custo da eletricidade tornará esta fonte interessantíssima, sobretudo quando assimilada sua característica de segurança energética”, declara Oliveira, da UFRJ.
As vantagens são muitas. Diminuição dos aterros sanitários e lixões, menor produção de gases poluentes, menos riscos ao meio ambiente e à saúde humana, mais economia e mais empregos são apenas algumas delas. Aliás, a economia é um dos grandes chamarizes de se transformar lixo em energia: em seu artigo “Lixo que vale ouro”, Oliveira aponta que o Brasil pode vir a ter, com a implantação desse sistema, uma receita da ordem de R$ 9 bilhões por ano. O montante viria da conservação de energia, da venda de recicláveis e da comercialização de créditos nas emissões de gases evitadas, como o carbono e metano. “Na verdade, a questão energética ligada ao lixo deve ter duas vertentes: a que primeiramente nos ocorre é a geração de energia a partir de lixo, e a segunda, que não deve ser esquecida, é a reciclagem de produtos constituintes do lixo, de cuja produção primária a energia entra como insumo. Reciclá-los usualmente diminui a demanda energética dentro do setor industrial pertinente”, afirma Luz, da Ufop.
Porém ainda há muitos desafios a vencer. O maior deles, como aponta Oliveira, é a desinformação, já que poucos acreditam ser possível que o lixo pode se tornar fonte de energia, o que resulta no subaproveitamento do potencial brasileiro. “Além de algumas iniciativas quanto ao aproveitamento de biogás de aterros, não existem projetos com outras tecnologias em curso no país para explorar todo este potencial”, explica o pesquisador. Mas isso não é motivo para desânimo. “Isso comprova a necessidade de planejamento, o que acaba de ser incorporado pela EPE, que está criando uma base de dados sobre os parâmetros das tecnologias disponíveis no mundo, a composição típica dos resíduos de cada região, a capacidade de aproveitamento dos co-produtos de cada processo, os preços dos energéticos e dos produtos que possam ser substituídos e a quantidade de emissões de gases de efeito estufa reduzida por tecnologia, com o intuito de facilitar a escolha sobre a tecnologia a ser aplicada”, conclui.
Lixo e energia podem ter mais em comum do que se imagina. Além de serem dois dos maiores problemas atuais – o crescimento da atividade industrial e do consumo gera, por um lado, aumento na produção de lixo, e por outro, o risco de falta de energia para atender a crescente demanda –, algumas das fontes de energia usadas atualmente são grandes produtoras de lixo, gerando resíduos, na maioria das vezes, prejudiciais à saúde. No entanto, o que é um grande problema pode ser, ao mesmo tempo, uma solução: o lixo pode se tornar ele mesmo uma fonte de energia.
A energia produzida no Brasil é majoritariamente limpa, pois é centrada nas hidrelétricas, que são responsáveis por 70,77% da matriz energética do país, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). No entanto, quando o nível dos reservatórios fica baixo, como na longa estiagem que houve em 2007, as termoelétricas movidas a gás ou a óleo são acionadas e elas produzem resíduos no processo de geração de energia. Na queima desses combustíveis, há emissão de gases poluentes, como o óxido nítrico (NO2) e o gás sulfuroso (SO2), que podem não apenas causar riscos à saúde, como problemas respiratórios, mas também contribuir para o aumento do efeito estufa. Também pode ocorrer contaminação de rios, lagos e mananciais, com o descarte incorreto dos resíduos gerados pelas termoelétricas.
Um caso que está criando polêmica atualmente é o da cana-de-açúcar utilizada para gerar biocombustível. O que em teoria deveria ser uma energia limpa está sendo colocado em xeque por vários pesquisadores, que apontam os problemas que a queima da palha da cana-de-açúcar, realizada durante a colheita, traz para o meio ambiente e para a saúde humana. Duas pesquisas feitas recentemente no Instituto de Química da Unesp relacionaram essa queima a problemas respiratórios e quantificaram as emissões de compostos de nitrogênio na atmosfera. “Este processo acaba interferindo diretamente na saúde da população, pois a combustão da palha da cana-de-açúcar libera poluentes e o principal dano é o prejuízo à qualidade do ar e, conseqüentemente, da saúde, pela excessiva emissão de monóxido de carbono e ozônio, trazendo também danos ao solo, às plantas naturais e cultivadas, à fauna e à população”, escrevem Maria Nazareth Vianna Roseiro, mestre em saúde pública, e Ângela Maria Magosso Takayanagui, professora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública, ambas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP, no artigo “Meio ambiente e poluição atmosférica: o caso da cana-de-açúcar”. Em algumas regiões do estado de São Paulo, a queima da palha durante a colheita chegou a ser proibida em 2006, no período em que a umidade relativa do ar atingiu níveis muito baixos.
O lixo nuclear talvez seja o caso mais emblemático: apesar de ser uma energia limpa, seus resíduos são um dos pontos que mais pesam em relação à rejeição ao seu uso. Esses resíduos são altamente tóxicos, com risco de desenvolvimento de câncer mesmo em pessoas expostas a baixas doses de radiação. São também muito poluentes, podendo contaminar o ar, a água e o solo. Tanto que o Greenpeace lançou em 2005 um relatório de 128 páginas sobre os riscos desse tipo de energia. Embora haja planos para a expansão da energia nuclear no Brasil, ainda não foi decidido qual será a destinação de seus resíduos. Atualmente, os resíduos de baixa e média densidade são depositados em tambores especiais, onde ficam armazenados até perderem sua radioatividade. Já os resíduos de alta densidade são depositados provisoriamente em piscinas de concreto especialmente preparadas, porém ainda não se definiu qual será o destino definitivo para eles. Dar uma destinação segura a esses resíduos diminuiria a rejeição a esse tipo de energia.
O caminho inverso
O lixo nuclear é exemplo de resíduo que também pode ser reaproveitado na própria geração de energia. O rejeito de alta radioatividade, que a indústria chama de subproduto, é formado pelo elemento combustível já irradiado dentro do reator. Normalmente, esse elemento é retirado do reator com apenas 15% da sua capacidade utilizada, podendo, então, ser reutilizado. O que já ocorre hoje em dia, no caso da usina receber elementos combustíveis com algum tipo de problema, é ela recorrer a esses resíduos em combinação com o novo. No entanto, o desenvolvimento de pesquisas pode levar à reutilização de uma maior parte desses resíduos, tornando a energia nuclear menos poluente e mais econômica.
O óleo de cozinha também pode passar de poluente a fonte energética. O resíduo, geralmente despejado em pias, ralos e até vasos sanitários, é um grave problema para rios, lagos e mananciais, pois não se dissolve nem se mistura com a água, formando uma camada densa na superfície, que impede as trocas gasosas e a oxigenação. Porém, se coletado, o óleo e outras gorduras de origem animal ou vegetal utilizado no preparo de alimentos, pode ser transformado em biodiesel – uma energia limpa e barata. A técnica já provou dar certo: uma parceria entre a Unicamp e a prefeitura de Indaiatuba (SP) possibilitou a instalação de uma usina capaz de transformar o óleo de cozinha em biodiesel, que já responde pelo abastecimento de toda a frota do Serviço Autônomo de Água e Esgotos da cidade.
Transformar resíduos em energia não é novidade no mundo desenvolvido. Nos países europeus, nos Estados Unidos e no Japão, essa técnica já está em prática desde os anos 1980. Mas o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil produz cerca de 150 mil toneladas de lixo por dia. A maior parte desses resíduos (aproximadamente 60%) tem seu destino em lixões, aterros sanitários irregulares, leitos de rio ou ainda queima a céu aberto. Os lixões e aterros existentes já estão, em sua maioria, saturados. Apesar disso, quase nada dos resíduos brasileiros é transformado em energia, ao contrário dos países ricos, que processam 130 milhões de toneladas de lixo, gerando energia elétrica e térmica em 650 instalações. Somente a União Européia extrai 8.800 megawatts de 50,2 milhões de toneladas por ano em 301 usinas, segundo dados da última edição da Waste to Energy International Exhibition & Conference from Waste and Biomass (http://www.wte-expo.com/), conferência internacional sobre últimas novidades e tecnologias ligadas à geração de energia a partir do lixo, realizada em maio de 2007 na Alemanha.
“É muito significativa a contribuição que essa nova forma de se gerar energia pode trazer. De fato, cada 200 toneladas por dia da fração orgânica dos resíduos sólidos domiciliares permitem a implantação de uma usina termelétrica com a potência de 3 megawatts, capaz de atender uma população de 30 mil habitantes. Isso quer dizer que, se a fração orgânica (60%) de todo o lixo domiciliar brasileiro fosse utilizada para produzir energia elétrica, poderíamos implantar usinas termelétricas com potência significativa, cujo valor seria apreciável”, escreve o economista Sabetai Calderoni, doutor em ciências pela USP, em seu livro Os bilhões perdidos no lixo. Contudo, o potencial brasileiro para transformar lixo em energia permanece subutilizado, mesmo com o aumento de 5,4% no consumo de energia no país no ano passado, segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). O dado é preocupante para um país que recentemente passou por um racionamento de energia e ainda vive sob o fantasma do apagão.
“A maior parte dos problemas causados pelo lixo pode ser resolvida com sua conversão em energia”, explica Luciano Basto Oliveira, doutor em planejamento energético pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da UFRJ, e assessor da Superintendência de Gás e Biocombustíveis da EPE. “É uma questão tecnológica, com suas repercussões ambientais, sociais e financeiras. Isto já é feito em diversos lugares, sobretudo no hemisfério norte, onde se encontram os países mais ricos. Só no caso do lixo urbano, existem mais de 1.700 usinas de geração elétrica em funcionamento, aplicando cerca de 100 tecnologias”, aponta.
Usar o lixo para gerar energia é uma solução não apenas econômica, mas também social e ambiental. Basta pensar que o destino mais comum do lixo brasileiro, os lixões e aterros, também são um problema para a saúde e para o meio ambiente, pois contaminam o solo com um líquido altamente tóxico, chamado chorume, que polui também as águas de lençóis freáticos, e produzem metano (CH4), um gás ainda mais prejudicial à atmosfera que o próprio dióxido de carbono (CO2), considerado o grande vilão do efeito estufa. Essa situação pode ser revertida com uma ação relativamente simples: o aproveitamento do gás produzido nos depósitos de lixo como fonte de energia.
“ Os processos de geração de energia a partir de lixo sólido são basicamente dois: a fermentação anaeróbica de lixo por microorganismos, com geração de metano como produto metabólico, e a incineração controlada do lixo”, explica José Aurélio Medeiros da Luz, um dos líderes do grupo de pesquisa sobre tratamento de minérios e resíduos da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Segundo o pesquisador, a fermentação – decomposição da matéria orgânica – é geralmente feita em biodigestores, ou em aterros sanitários munidos de sistema de dutos de coleta do biogás, um conjunto de gases gerados por essa decomposição. O biogás possui entre 50% e 70% de metano, que tem poder calorífico, isto é, pode ser queimado para gerar energia. No caso da incineração, a energia é gerada através da queima completa dos resíduos. Esse processo produz monóxido de carbono, que também apresenta poder calorífico. Em ambos os casos, é possível não apenas gerar energia a partir do lixo, mas também utilizar a redução das emissões de gases de efeito estufa para negociar certificados de créditos de carbono com valor no mercado financeiro, de acordo com o Protocolo de Kyoto.
Potencial brasileiro
O Brasil possui grande potencial para gerar energia elétrica a partir de resíduos sólidos e a alternativa poderia aumentar a atual oferta do país em 50 milhões de megawatt-hora por ano, o que representa mais de 15% do total atualmente disponível ou cerca de um quarto do que gera a usina hidrelétrica de Itaipu. “ O caminho é mais curto que parece, pois a comprovação do baixo custo da eletricidade tornará esta fonte interessantíssima, sobretudo quando assimilada sua característica de segurança energética”, declara Oliveira, da UFRJ.
As vantagens são muitas. Diminuição dos aterros sanitários e lixões, menor produção de gases poluentes, menos riscos ao meio ambiente e à saúde humana, mais economia e mais empregos são apenas algumas delas. Aliás, a economia é um dos grandes chamarizes de se transformar lixo em energia: em seu artigo “Lixo que vale ouro”, Oliveira aponta que o Brasil pode vir a ter, com a implantação desse sistema, uma receita da ordem de R$ 9 bilhões por ano. O montante viria da conservação de energia, da venda de recicláveis e da comercialização de créditos nas emissões de gases evitadas, como o carbono e metano. “Na verdade, a questão energética ligada ao lixo deve ter duas vertentes: a que primeiramente nos ocorre é a geração de energia a partir de lixo, e a segunda, que não deve ser esquecida, é a reciclagem de produtos constituintes do lixo, de cuja produção primária a energia entra como insumo. Reciclá-los usualmente diminui a demanda energética dentro do setor industrial pertinente”, afirma Luz, da Ufop.
Porém ainda há muitos desafios a vencer. O maior deles, como aponta Oliveira, é a desinformação, já que poucos acreditam ser possível que o lixo pode se tornar fonte de energia, o que resulta no subaproveitamento do potencial brasileiro. “Além de algumas iniciativas quanto ao aproveitamento de biogás de aterros, não existem projetos com outras tecnologias em curso no país para explorar todo este potencial”, explica o pesquisador. Mas isso não é motivo para desânimo. “Isso comprova a necessidade de planejamento, o que acaba de ser incorporado pela EPE, que está criando uma base de dados sobre os parâmetros das tecnologias disponíveis no mundo, a composição típica dos resíduos de cada região, a capacidade de aproveitamento dos co-produtos de cada processo, os preços dos energéticos e dos produtos que possam ser substituídos e a quantidade de emissões de gases de efeito estufa reduzida por tecnologia, com o intuito de facilitar a escolha sobre a tecnologia a ser aplicada”, conclui.
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